O
cabo eleitoral
Fico a matutar sobre qual o tratamento
dariam os grandes escritores dos séculos XVIII e XIX a esta figura
curiosa, cheia de nuanças e filigranas, denominada cabo eleitoral.
Com que tintas Flaubert, Balzac, Dickens, Dostoiewsky, Machado, Camilo
e tantos outros criadores de personagens imortalizados pelo talento
pintariam este tipo especial, de surgimento sazonal em tempo em que
mais acesamente se disputa o poder? Sua conformação física e psicológica
é variada. Veste-se de trajes ajustados às diversas situações a serem
enfrentadas, camaleonicamente em função das mutações ocorridas na
disputa pelo mando local. Sua presença é indispensável, sendo possível
construir uma lei sobre política e seu fascinante jogo de que o cabo
eleitoral é indispensável ao sistema democrático. Ele acaba se transformando
em personagem central da disputa pelo voto, consciente ou não. Especialmente
em regiões mais desvalidas e contaminadas pela corrupção, sobretudo
em período difícil em que a verdadeira representação política foi
substituída pela chamada “representação de resultados”.
Analisando a forma e os argumentos com que atua, é possível identificar
as variadas formas assumidas por este ente especial. Há o cabo eleitoral
ideológico, com conversa empolada e carregada de frases de efeito,
disposto a convencer o eleitor pela força de teses de natureza doutrinária,
em que o mais forte viés é o aceno com a certeza de que o futuro será
melhor e mais afortunado para os pobres e despossuídos. Depois de
tentar o eleitor com argumentos distantes do entendimento comum, retorna
ao candidato de sua preferência para dar conta da missão diária de
arrebanhar votos. Diante da resposta ouvida, “pois sim” querendo significar
“pois não” e do “pois não”, às vezes, querendo dizer “pois sim”, ilude-se
o cabo eleitoral ideológico muito mais com a ilusão de sua própria
doutrinação do que com a certeza do voto tentado. Há o cabo eleitoral
movido apenas pelo interesse pessoal ou familiar. Este costuma ser
eficiente se identificar no candidato que apóia qualquer possibilidade
de êxito eleitoral. Sai a campo na busca do eleitor indefinido, gasta
a sola do sapato em intermináveis caminhadas de casa em casa na busca
do voto, intercaladas com visitas ao candidato, a fim de sussurrar-lhe
ao ouvido não esquecer de seus pedidos. Há o cabo eleitoral ligado
a alguma igreja, seja ela católica, evangélica, budista, espírita
ou esotérica. Este é um cabo eleitoral que vem ganhando força e prestígio
pelo exemplo abundante encontrado nas pregações expostas em rádios
e televisões. Brandindo nas mãos o evangelho ou outro alfarrábio com
doutrinas de acordo com sua crença, manifesta ao eleitor a ser cativado
a certeza de que seu candidato poderá oferecer-lhe muito mais do que
supõe sua vã filosofia. Às vezes, exagera na promessa de salvação
da alma. Os mais abusados e oportunistas terminam o processo de conquista
com algum pedido de espórtulas para a edificação material destinada
a acolher filiados ao seu credo.
Há um tipo curioso de cabo eleitoral, este talvez o mais nobre deles,
o que durante toda a vida marcou sua presença pela ajuda desinteressada
aos mais pobres e flagelados. Via de regra é humilde, fala mansamente,
raramente opina em matérias diferentes daquelas de seu trato diário,
enfim, é o mais eficiente perante as camadas mais humildes da população.
Os cabos eleitorais são permanentemente um tratado de psicologia humana.
Observá-los acaba sendo exercício curioso de identificar como as eleições
servem para desnudar as virtudes e fraquezas da alma. Da mesma argila
e do mesmo vaso em que todos são modelados, sê-los-ão ainda por muito
tempo até que a escola da democracia consiga sua nunca alcançada perfeição.
Murilo
Badaró - Presidente da Academia Mineira de Letras
Coluna Jornal Estado de Minas de 07/09/2004 |