Crônica:
Zerar a fome
Por Frei Betto

Hoje é o Dia Mundial da Alimentação. Promovido pela FAO, visa lembrar que, em pleno século XXI, quando debatemos transgênicos e clonagens, 840 milhões de pessoas vivem em situação crônica de subnutrição. A cada dia, 30 mil crianças morrem de fome no mundo. Na América Latina, cerca de 400 mil crianças, entre zero e cinco anos, são vítimas, a cada ano, da falta de nutrientes essenciais à vida. O Brasil contribui para esse genocídio com aproximadamente 180 óbitos infantis.
Em todo o mundo, 40 milhões de pessoas estão infectadas pelo vírus HIV. A aids mata 20 vezes menos que a fome. E por que há tantas campanhas de prevenção e combate à aids e raras de combate à fome? Por uma razão cínica: a aids não faz distinção de classes, a fome sim. Como se nós, os bem nutridos, disséssemos: "Que os miseráveis morram de fome, isso não nos atinge. Não podemos é morrer de aids". Lula passou fome na infância. Dos 12 filhos de sua mãe, quatro foram vítimas precoces da subnutrição.
A história do Brasil, marcada por 358 anos de escravatura, ensina que uma questão social só é encarada de frente quando ingressa na agenda política. A abolição só ocorreu quando a escravidão tornou-se fato político. Lula faz o mesmo com a fome, introduzindo-a na agenda política do Brasil, através do Fome Zero, e do mundo, através de sua participação em fóruns internacionais, como o discurso que proferiu na abertura da Assembléia Geral da ONU, quando propôs a criação de um Fundo Mundial contra a Pobreza, fazendo eco à proposta da FAO de uma Aliança Mundial contra a Fome.
O Fome Zero beneficia, hoje, 1 milhão de famílias, ou seja, 5,588 milhões de pessoas que possuem renda mensal inferior a R$ 90. São mais de 1,2 mil municípios atendidos pelo programa. Desde janeiro, o Fome Zero sofreu críticas improcedentes. Muitos imaginavam uma grande gincana de distribuição de alimentos, milhares de carretas saindo do Rio ou de São Paulo para distribuir comida aos pobres do Nordeste. Ora, o Fome Zero não é um programa assistencialista. Visa a inclusão social, o acesso ao trabalho, a conquista da cidadania e da auto-estima.
Como funciona o Fome Zero? Ele prioriza, neste ano, o semi-árido nordestino, o Norte de Minas, as aldeias indígenas em estado de subnutrição, os acampamentos e assentamentos rurais, as comunidades quilombolas e a população que vive dos lixões. Ao entrar num município, o programa trata de formar um comitê gestor, integrado por nove pessoas: três do poder público e seis eleitos pela sociedade civil organizada. Este comitê inclui no cadastro do governo federal as famílias mais carentes. Cada uma recebe o cartão alimentação, que lhe dá direito a sacar, na CEF ou em uma agência dos Correios, R$ 50 por mês, para comprar alimentos. Como são, no mínimo, 500 famílias cadastradas em cada município, isso significa uma injeção considerável de recursos mensais que reativam a economia local.
Nas pegadas do cartão alimentação, o município passa a ser alvo de um conjunto de políticas públicas: alfabetização, programa de saúde, agricultura familiar, hortas doméstica e comunitária, microcrédito, construção de moradias etc. Com o Fome Zero, chega também o Sede Zero: o programa de construção de 1 milhão de cisternas de captação de água da chuva nos próximos cinco anos, monitorado pela Articulação no Semi-Árido (ASA). O presidente Lula insiste na participação da sociedade no Fome Zero. Empresas, denominações religiosas, ONGs, sindicatos, associações e entidades internacionais têm respondido positivamente ao apelo. Entre tantos programas articulados com o Fome Zero, há o Escolas-Irmãs (escolasirmas@yahoo.com.br), em que escolas assumem, por quatro anos, parcerias com escolas de ensino fundamental e médio do semi-árido ou do Norte de Minas.
Todos podem e devem participar dessa grande mobilização nacional em prol do combate à fome, rumo à inserção social de 44 milhões de habitantes do nosso País. Ligue 0800-007-2003 ou acesse www.fomezero.gov.br, www.fomezero.org.br ou www.mobilizacao.org.br. Participar do Fome Zero é atuar no gesto evangélico de Jesus ao multiplicar os pães e os peixes para a multidão faminta. Quem reparte o pão, partilha Deus. Por isso, Jesus nos ensinou a orar Pai Nosso e Pão Nosso. Não fazer do pão algo só para si, mas para todos, pois Ele veio para que "todos tenham vida e vida em abundância" (João 10,10).

Frei Betto é escritor e coordenador da mobilização social do Fome Zero, autor de Hotel Brasil (Ática), entre outros livros.
10/16/2003