O pai da paleontologia
e arqueologia no Brasil
Peter Lund reconstituiu em Lagoa Santa
a história do pleistoceno nos trópicos
As imagens deste perfil
são reproduções do livro Tempo passado - mamíferos do
pleistoceno em Minas Gerais, de Cástor Cartelle (Belo Horizonte:
Palco, 1994)
O
dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) mudou-se para o Brasil
fugindo do clima nórdico, temeroso da tuberculose que vitimara dois
irmãos. Depois do encontro casual com o conterrâneo Peter Claussen,
Lund fixou residência em Lagoa Santa (MG). Nas cavernas da região,
descobriu mais de 12 mil peças fósseis que permitiram escrever a
história do período pleistoceno brasileiro -- o mais recente na
escala geológica -- numa época em que o passado tropical era quase
desconhecido pela ciência. Lund descobriu também ossadas do chamado
'homem de Lagoa Santa', que puseram em xeque uma série de pressupostos
aceitos pela então incipiente paleontologia.
Apesar
da existência de achados fósseis anteriores, Lund é considerado
pai da paleontologia brasileira. O título se deveria ao pioneirismo
em pesquisas sistemáticas, segundo o paleontólogo Cástor Cartelle,
professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "É
notável seu conhecimento e os relativamente poucos erros, sobretudo
se levarmos em conta o isolamento na pequena Lagoa Santa."
Exemplo demonstrativo é o caso das preguiças gigantes: Lund percebeu
que havia duas espécies distintas na América do Sul -- a existência
de apenas uma era reconhecida. Um século e meio depois, estudos
demonstrariam a correção do dinamarquês.
O primeiro achado de Lund foram poucos ossos de
uma das menores preguiças-gigantes da América
Lund
também é reconhecido como pai da arqueologia e da espeleologia (estudo
das cavernas), pioneirismo extensivo às três Américas. Foi o primeiro
a assinalar a presença de sambaquis e inscrições rupestres, além
de descrever instrumentos líticos encontrados. Ele foi ainda o primeiro
a localizar e entrar em algumas das mais de 800 cavernas que explorou.
Cartelle
enumera algumas das
espécies extintas que tiveram fósseis descobertos pela primeira
vez por Lund: cavalos, diversos carnívoros como o tigre-dentes-de-sabre
e o cachorro das cavernas, além de preguiças terrícolas, capivara
e tatu gigantes. Ainda hoje, Lund é a principal referência para
estudiosos da paleontologia de mamíferos no Brasil. Pretendia desenvolver
monografias sobre diferentes mamíferos pré-históricos, mas realizou
seu intento apenas para os caninos.
As
coleções remetidas a sua pátria devido ao financiamento pela monarquia
dinamarquesa seriam estudadas no final do século 19 e início do
20 por um paleontólogo de Copenhague, Herluf Winge, que interpreta
em diversos volumes a obra de Lund. No Brasil, os escritos de Lund
foram publicados em 1935, pela Biblioteca Mineira de Cultura, e
em 1950 pelo paleontólogo Carlos de Paula Couto, continuador de
seu trabalho.
Antes
do surgimento da teoria de Darwin, as descobertas de Lund apontavam
para a evolução das espécies. Luterano convicto, o dinamarquês acreditava
que desastres naturais teriam levado à extinção de diversas formas
de vida. Especula-se que a descoberta de fósseis que inviabilizavam
a teoria das catástrofes de que Lund era partidário teria contribuído
para seu afastamento da ciência, ainda por volta dos 40 anos.
Raquel
Aguiar
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
Um
botânico em Lagoa Santa
Lund lança base da ecologia no Brasil com estudo paleontológico
de grutas mineiras
Acima, gruta de Maquiné. Lund construía um casebre de pau-a-pique
na
frente das grutas visitadas, ao qual se atava com uma corda pela
cintura
Peter
Lund nasceu em Copenhague a 14 de junho de 1801, filho de ricos
comerciantes de lã. Bacharel em Letras, aos 17 anos ingressa no
curso de Medicina. Em 1824 começa o trabalho como pesquisador de
campo com dois trabalhos condecorados. No ano seguinte, publica
um livro de fisiologia que foi adotado nas universidades de Copenhague,
Viena e Nápoles. No mesmo ano, seu talento para a zoologia é revelado
na premiada monografia O sistema de circulação nos crustáceos.
Lund
transfere-se para o Brasil em dezembro de 1825 e logo sente a "atração
mágica da natureza tropical". Reside inicialmente na aldeia
de pescadores de Itaipu (RJ). Dedica-se à zoologia e sobretudo à
botânica. Estuda o comportamento das formigas e os ovos de certos
moluscos em um dos mais completos ensaios sobre o assunto. Monta
diversas coleções zoológicas, remetidas ao Museu de História Natural
da Copenhague.
O
naturalista embarca para Hamburgo em 1829. Exibe suas pesquisas
na França e Itália, onde mantém contato com autoridades científicas
da época. Em 1933, retorna em definitivo ao Brasil. Desta vez, dedica-se
à botânica das plantas domésticas em companhia de L. Ridel. Juntos,
excursionam pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Minas Gerais
para estudar a fauna e flora locais.
Em
outubro 1834, um ano após a partida, Lund e Ridel chegam a Curvelo
(MG), onde encontram casualmente Peter Claussen, que explorava salitre
em cavernas calcárias na região de Lagoa Santa. Havia em seu interior
grandes ossos que os habitantes locais atribuíam a homens pré-históricos
gigantescos. A extensa área para pesquisa levaria Lund a se dedicar
à paleontologia. A excursão prossegue até Ouro Preto, onde Ridel
adoece. Lund compila suas notas de viagem nas Observações a respeito
da vegetação dos campos do interior do Brasil.
No início do século 19, Lagoa Santa tinha cerca de 80 casas e 500
habitantes
Em
1835, Lund retorna a Lagoa Santa. As primeiras grutas visitadas
foram a Lapa Vermelha e a Lapa Nova de Maquiné. Sobre a última,
escreve: "quanto a mim, confesso que nunca meus olhos viram
nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte".
Lund preservou certa paternidade sobre a descoberta, pedindo inclusive
a conservação da gruta em testamento. As escavações nas grutas foram
registradas por Andreas Brandt, desenhista e pintor norueguês que
se torna auxiliar de Lund.
Lund
é considerado o pai da espeleologia brasileira pelo pioneirismo
na visita a várias grutas e pela consciência ecológica vanguardista
que demonstrou. "Infelizmente, retiraram o conteúdo destas
grutas para extração do salitre, sem o mínimo respeito pelas relíquias
acumuladas nestes lugares realmente sagrados." Lund cria também
a base para uma ecologia brasileira ao convidar o botânico Eugene
Warming para realizar um levantamento do cerrado da região de Lagoa
Santa, que originou o primeiro trabalho de fitoecologia do mundo,
publicado em 1840.
Raquel
Aguiar
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
Intercâmbio
científico Brasil-Dinamarca
Lund fomenta diálogo institucional estimulado por suposta vinda
de vikings ao país
Em carta à Real Sociedade, Lund , relatou a descoberta da primeira
observação
de pintura rupestre na América, retratada pelo desenhista Andreas
Brandt
A
aproximação entre as instituições científicas brasileira e dinamarquesa
do início do século 19 é fruto da busca por provas da suposta chegada
de vikings ao Brasil antes de 1500. Lund é parcialmente responsável
por esse estreitamento de laços: ele era membro do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado no Rio de Janeiro em 1838,
e da Sociedade Real dos Antiquários do Norte, criada em 1825 por
Carl Christian Rafn.
Peter
Lund e Peter Claussen foram admitidos no IHGB em 1839. Claussen
foi freqüentador assíduo da associação; Lund contribuiu com volumosa
correspondência acadêmica e remessa de materiais. Ele doou ao Instituto
um exemplar de um livro de Rafn que narra a descoberta da América
do Norte pelos dinamarqueses no século 10 e causou grande impacto
sobre a intelectualidade brasileira.
Na
troca de informações entre o Instituto e a Sociedade Real, destaca-se
um texto traduzido por Lund. O documento descoberto na Livraria
Pública da Corte, datado de 1754 e bastante danificado, descrevia
uma cidade abandonada no interior da Bahia encontrada por aventureiros
em busca de ouro. O povoado localizado em um planalto e protegido
por uma muralha com inscrições indecifráveis teria a estátua de
um homem apontando o Pólo Norte na praça central. À beira do rio,
ouro e prata abundantes.
A
revista do IHGB chegou a anunciar a descoberta da cidade -- que
não veio a acontecer de fato. Lund traduziu e publicou nas revistas
brasileira e dinamarquesa os relatórios da expedição frustrada.
Em suas observações, acrescentou que era recomendável o estudo dos
homens primitivos do Brasil por meio de seus vestígios mortais,
já que o relato não era confiável.
Em
1844, Peter Lund formularia nas publicações de ambas as sociedades
suas idéias sobre a origem do homem pré-histórico brasileiro. Ele
aceitava a co-existência de animais extintos e homens, pois encontrara
ossos de homens e animais misturados. Nada ficou provado, pois inundações
são comuns nas grutas calcárias de Lagoa Santa. Para Lund, o povoamento
da América do Sul seria muito antigo, já que "(...) várias
espécies animais parecem ter desaparecido da criação viva até o
tempo do aparecimento do homem aqui". Ele conclui que o homem
fóssil americano pertenceria à mesma raça que o homem atual.
A
conclusão era contrária à suposição de que o homem americano teria
origem no Velho Continente. Segundo Lund, haveria um vínculo estreito
entre a raça mongolóide e a dos indígenas americanos. Ele arriscava
a hipótese de que essa raça seria originária das Américas e teria
se espalhado para a Ásia (hoje, provou-se ter ocorrido justamente
o inverso). Com isso, frustrava-se aos olhos de Lund a tentativa
de se realizar uma história comum, que motivava os laços entre o
Instituto Histórico e a Sociedade Real. A correspondência entre
as duas instituições diminuiu e cessou em 1864, ocasião do falecimento
de Carl Christian Rafn.
Raquel
Aguiar
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
O
'homem de Lagoa Santa'
Descoberta de ossadas humanas pode ter levado Lund a abandonar
a ciência
Crânio e mandíbula de um 'homem de Lagoa Santa'
Peter
Lund era adepto da teoria catastrofista, segundo a qual desastres
naturais teriam extinguido as sucessivas formas de vida. A teoria
foi proposta pelo anatomista francês Georges Cuvier a partir do
criacionismo e do atualismo geológico. O criacionismo atribuía a
Deus a gênese de cada espécie e se opunha à teoria de Lamarck, para
quem as espécies evoluíam lentamente em função do uso e desuso de
características adquiridas. Já o princípio do atualismo geológico
via nas diferenças entre fósseis de camadas geológicas distintas
a prova de que teria havido sucessivas 'criações'.
Além
de defender o catastrofismo, Lund era fixicista: acreditava
não haver ligação entre as espécies. Negava, portanto, a evolução
proposta por Lamarck e sistematizada posteriormente por Darwin.
Ele já percebia, porém, semelhanças entre espécies fósseis e atuais.
Escreveu, inclusive, um estudo comparativo sobre o assunto.
Os
catastrofistas aceitavam a existência de um homem 'antediluviano'
como um ser distinto do homem atual (para Cuvier, a última grande
extinção seria fruto do dilúvio bíblico). Mas a noção de que esse
homem existiu na América não era considerada à época. Apesar das
idéias circulantes, Lund convenceu-se da antigüidade das ossadas
humanas descobertas por ele em 21 de abril de 1843.
Esses
ossos de cerca de trinta indivíduos estavam misturados a fósseis
de animais, "todos depositados aproximadamente na mesma época",
conforme relata Lund. A idéia de uma humanidade tão antiga a ponto
de ter coexistido com a fauna extinta ainda não era considerada
plausível.
As escavações de Lund apontavam para o evolucionismo e colocaram
em xeque sua fé luterana e a teoria catastrofista de Cuvier
Do
ponto de vista antropomórfico, os fósseis descobertos por Lund eram
bastante distantes dos indígenas americanos e próximos dos negróides.
Suas características físicas eram homogêneas, o que indica seu isolamento
genético (ele não teria se misturado a grupos diferentes). Essa
identidade configurou o perfil daquele que ficou conhecido como
o 'homem de Lagoa Santa'.
Entre
as ossadas de Lagoa Santa, somente as mais antigas -- datadas entre
11 e oito mil anos -- possuem características negróides; os fósseis
a partir de oito mil anos já apresentam características mongolóides.
O desaparecimento da raça negróide que habitou a região e seu relacionamento
ou não com os mongolóides que vieram a seguir e dominaram o continente
permanecem não esclarecidos.
Pouco
depois da descoberta do homem de Lagoa Santa, Lund abandonaria suas
pesquisas. Em carta à família, atribuiu a renúncia a problemas financeiros.
Cástor Cartelle propõe outra justificativa. "Lund ficou um
tanto desorientado com a existência do homem pré-diluviano e sincrônico
da fauna recente e extinta. Acredito que o fato de comprovar que
sua perspectiva catastrofista não tinha sustentação foi uma das
causas que o impeliram a abandonar a vida científica." A extrema
religiosidade também é considerada por alguns autores como motivo
do precoce abandono da ciência.
Raquel
Aguiar
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
O
enterro festivo de Dr. Lund
Estimado pelo povo de Lagoa Santa, pediu música e proibiu
lágrimas no funeral
Casa de Lund em Lagoa Santa. Nos meses de seca, ele
realizava expedições; na época das chuvas, recolhia-se
para estudo dos fósseis no galpão nos fundos da casa
Peter
Lund era muito estimado pelos habitantes da pequena vila de Lagoa
Santa, que costumavam chamá-lo Dr. Lund. De hábitos excêntricos
e temperamento arredio, preferia o isolamento. Teve constantemente
a seu lado Nereo Cecílio de Ramos, filho adotivo de Lagoa Santa
que o auxiliava em tudo o que fazia. Ao morrer, distribuiu seus
bens entre o filho e algumas pessoas que o serviram.
No
livro O Naturalista, de 1923, Nereu revela um pouco da personalidade
do paleontólogo. "Ele conservou até os últimos dias grande
interesse pelo progresso da ciência, e sentia um grande prazer,
quando na sua solidão era informado a esse respeito. Era de um caráter
nobre, benévolo, amável e caritativo (...) era por todos que o conheciam
de perto muito considerado e respeitado pelo seu caráter, honradez
e modo independente de pensar, e é indubitável que a sua palavra
e opinião tiveram grande peso no ânimo dos homens de influência
da localidade..." Nereu cita ainda que Lund medicava na região,
sempre acertando o diagnóstico. "O seu trato fidalgo, a todos
dispensado, sem exceção de grandes ou pequenos, cultos ou ignorantes,
fazia-o querido e respeitado pelo povo lagoa-santense..."
Lund
viveu na mesma casa até a morte. Nos fundos, construiu um barracão
para preparação e estudo de fósseis. Protestante, não poderia ser
enterrado no cemitério local. Comprou um terreno que mandou "murar
para enterrar meus amigos e a mim também". Lund determinou
que queria ser sepultado à sombra de um pequizeiro -- árvore típica
do cerrado, que dá um fruto aromático -- num local aprazível onde
costumava estudar. Também ali foram sepultados seus colaboradores
Pedro Andreas Brandt, Guilherme Behrens e João Rodolfo Müller. Ao
lado do túmulo, marcado por uma lápide de mármore negro, foi erguido
um monumento a Lund e a Eugene Warning por iniciativa da Academia
Mineira de Letras -- hoje tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional.
O frondoso pequizeiro marca o local onde Lund está enterrado
Lund
faleceu a 25 de maio de 1880, três semanas antes de completar 79
anos. Como Nereo Cecílo escreve em carta à família na Dinamarca,
a última enfermidade durou cerca de dois meses. Ao fim, Lund delirava.
"Dizia que o que ele mais amava eram as ciências e sobretudo
a música," Nereo relata. "Suas últimas palavras foram:
amor, amor, amor."
Dias
antes de morrer, Lund chamou o coveiro. Deu-lhe uma generosa gratificação
e encarregou-o de abrir imediatamente sua cova, que deveria ter
mais de vinte palmos de profundidade. Lund chamou também a autoridade
local e pediu que não o abandonasse até expirar para não haver demora
na leitura de seu testamento, que continha recomendações para execução
imediata. Solicitou uma grande festa para todos os moradores do
arraial; à frente do cortejo, deveria vir a Corporação Musical de
Santa Cecília -- primeira banda de música de Lagoa Santa, fundada
e custeada por Lund. Pediu músicas alegres e que ninguém chorasse.
Em sua casa, a mais farta mesa estaria posta, com os vinhos de sua
adega.
Raquel Aguiar
Ciência Hoje/RJ
agosto/200 |